quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Cicatrizes

A cortina de fumaça de gás lacrimogêneo era transfixada por pedras e outros objetos surpresa que martelavam o escudo do Soldado Afonso em uma latência dissonante. Os gritos e incêndios simulavam um cenário de guerra na Avenida Presidente Vargas. Era mais um dia de protesto. Um morteiro ricocheteou o asfalto e explodiu no coturno de Afonso, fazendo com que baixasse a guarda. Foi quando, em meio ao cordão de manifestantes que avançavam, o soldado avistou algo que o fez estacar. Seus colegas avançaram, deixando-o pra trás, boquiaberto, não acreditando nos seus olhos. Um coquetel molotov cintilou à luz do sol poente e passou ao lado de sua orelha, incendiando a viatura atrás de si. Aquilo o fez acordar, e a passos largos mergulhou no caos à frente sentindo o gás arder à face. A apenas alguns metros da linha imaginária que os separava foi possível confirmar a identificação. Sua cicatriz na orelha ardeu em chamas, a palma de sua mão formigou. As lembranças o tomaram por inteiro num torpor de ódio e rancor. O militar largou seu escudo, arremessou o cassetete de lado e mergulhou na multidão como um jogador de Rugby. Seus braços pareciam dragas removendo os manifestantes indesejados da frente até que conseguisse tomar seu alvo pela camisa. Em seguida girou, atirando-o ao chão já deitando sobre e imobilizando-o. Agora tinha certeza. Era ela. Sem dúvidas. O terror tomava a face daquela senhora. Suas rugas não eram capazes de apagar tal fisionomia da memória do soldado.
 – Tia Dolores!!! Quanto tempo!!! – disse Afonso de olhos trêmulos num ar psicopata.
Alguns segundos foram o bastante até que Dolores percebesse a bizarra cicatriz que atravessava a orelha do rapaz fora a fora e reconhecesse seu carrasco:
 – Quem é você?! Não! Não pode... Afonsinho!!!??? – incrédula, Dolores perdeu as forças ao relutar com o militar.
A essa altura, um cerco se fechava em volta da dupla entre manifestantes e policiais que defendiam suas causas como gladiadores do asfalto.
 – ISSO!!! Afonsinho Valadares! Escolinha Trenzinho Feliz! Lembrou???!!! Eu esperei a vida toda por esse dia, sua filha da puta! Você vai pagar por cada caroço de milho que entrou no meu joelho, por cada reguada de madeira na palma dessa mão... e olha pra essa orelha! OLHA PRA ESSA ORELHA, SUA VADIA!!!
Tia Dolores chorava feito criança. Era o fim. Sentia o cheiro da morte.

* * * 
Dias se passaram até que Afonso recebesse a primeira visita no Batalhão Especial Prisional. Tiraram sua farda, sua autoridade e sua liberdade. Mas jamais... jamais conseguiram tirar aquele pedaço de orelha de seu bolso. Estava seco, podre e fétido. Mas para Afonsinho tinha o melhor cheiro do mundo: o cheiro de vingança.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Mocidade

Ela estava sentada no meio fio feito uma criança. Pés separados, joelhos unidos repousando os finos cotovelos sobre, mãos envolvendo o queixo parcialmente escondido por algumas madeixas de cabelo. O loiro escorria sobre sua cabeça como um véu, porém amarrotado pela preguiça matinal. Seus olhos lutavam por se manterem abertos, e o resultado disso era um olhar semicerrado, até então disperso. Foi então que notou que minha atenção se voltava pra ela, e após um ou dois disfarces resolveu congelar seu olhar sobre mim. Sua discrição se foi com o sono. Seus olhos agiram como duas flores desabrochando, e o azul daqueles não havia sido percebido por mim. Me tomou como Medusa. Me vi perplexo, surdo, em pedra. Aos poucos, toda a sua infantilidade foi se esvaindo. Suas mãos libertaram seu rosto, afagando o véu dourado que tomou forma instantaneamente. Suas pernas deslizaram e se cruzaram como dois corpos ao coito. Ela apoiou as mãos na calçada e se inclinou levemente pra trás, revelando a protuberância de seios recém-formados que disputavam espaço com sua blusa. Parte de sua barriga à mostra ostentava uma penugem quase transparente que convidava olhares abaixo de seu umbigo. Voltei aos seus olhos, estavam sorrindo, quase que caçoando. Sua boca, estática. Ela passou os dedos por detrás da orelha, retocando seu cabelo. Aquele olhar azul não saia de mim. Incomodava, convidava, me despia e me vestia. 
Vi uma menina com seus prováveis dezesseis anos se tornar uma mulher em dois minutos. E por dois minutos fui menino.