sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Pipoca é a alma do negócio

O clima escaldante fazia com que minha testa gotejasse suor feito água. Uma visão turva sobre o cenário férreo na estação de São Francisco Xavier, na esperança de que o Santa Cruz aparecesse como uma miragem nos contornos do Maracanã. Em meio a faces fadigadas de trabalhadores que olhavam para o mesmo horizonte evaporando, avistei um vendedor ambulante saltando plataforma abaixo e cruzando a linha com um enorme fardo de pipocas no ombro. Atrás dele, se projetava um vagão vindo em alta velocidade, buzinando insistentemente. Um senhor ao meu lado fumava um cigarro, despreocupado observando o vendedor, agora escalando a plataforma seguinte, onde parou de pé sem o menor sinal de exaustão. Logo, o trem de Japeri passou soando a buzina como um triste choro. O senhor deu um útimo trago e atirou sua guimba de cigarro sobre a linha. Perguntou ao vendedor, sem compromisso:

" - Nenhum de vocês já não morreu atravessando essa linha?"

O vendedor tirou seu boné, passou a mão sobre os ralos cabelos, fitanto o senhor.

" - Meu 'sinhô', eu tenho mais de vinte 'ano' de pista aqui. Sô de bobeira não..." e saiu gritando:
" - Pipoca macia e crocante é um reaaaal!"

O senhor assentiu e ficou pensativo olhando o vendedor se distanciando. Depois se virou para mim e disse com a maior segurança do mundo:

" - Vinte anos!? P#t% que o pariu... Essa p*%ra deve dar dinheiro mesmo..."

Eu por fim, poderia ter uma visão antropológica e refletir sobre a vida daquele indivíduo trabalhador sem escolhas, talvez. Mas o calor me ardia as têmporas. Preferi concordar falsamente e rir comigo mesmo.
A vida é uma Comédia Dell'Arte - pensei.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A que se vive, a que se come

Sr. Matarazo almoçava à negócios em sua majestosa mansão em Angra dos Reis, com Charles Craine, seu futuro sócio. Desculpava-se com Charles pelas obras em andamento nos cômodos vizinhos. Estava sendo instalada uma banheira maior de hidromassagem e uma academia particular no andar acima.
Sr. Matarazo, muito cordial, convidara "seu Severino", pedreiro responsável pela obra a almoçar à mesa, em sua companhia e de Sr. Charles, tal qual não apreciou muito a ideia de dividir o mesmo ambiente com um peão, segundo ele, sem escrúpulos e um tanto indelicado.
Seu Severino chegou humildemente, retirou seu boné de propaganda política e sentou-se a mesa, ainda tímido. Sr. Matarazo mandou que ficasse à vontade e que se servisse, logo abrindo um diálogo enquanto servia-se de ostras
à portuguesa:


" - Ah! O que mais na vida combina tão bem quanto ostras e um bom vinho?"
" - Alheira de mirandela" - Sugeriu Sr. Charles.
" - Muito bem lembrado, Charles, muito bem lembrado.
" - Uma Dodge Ram e um dia de chuva no campo" - Retrucou Sr, Matarazo

Seu Severino ouvia cabisbaixo sem intrometer-se no assunto, mastigando calmamente.

" - Um puro sangue e uma sela Ruiz Diaz" - Retomou Sr. Charles
" - Meu taco de golf e minha notável habilidade. Modéstia a parte" - Disse Sr. Matarazo sorrindo e em seguida, completando:
" - E você, Severino? Dê uma sugestão tão prazeirosa quanto as nossas!


Seu Severino palitou os dentes, pensou por poucos segundos e falou com toda a certeza do mundo:

" - Um banho quente e uma 'mulé' safada".

Os dois entreolharam-se espantosamente e seu Severino permaneceu impassível, limpando seu molar, agora com dois dedos dentro da boca.
Charles voltou a atenção à lagosta em seu prato e Sr. Matarazo refletia o pensamento de seu Severino.

" - Você é um sujeito muito esperto, seu Severino... Muito esperto!"