quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Cicatrizes

A cortina de fumaça de gás lacrimogêneo era transfixada por pedras e outros objetos surpresa que martelavam o escudo do Soldado Afonso em uma latência dissonante. Os gritos e incêndios simulavam um cenário de guerra na Avenida Presidente Vargas. Era mais um dia de protesto. Um morteiro ricocheteou o asfalto e explodiu no coturno de Afonso, fazendo com que baixasse a guarda. Foi quando, em meio ao cordão de manifestantes que avançavam, o soldado avistou algo que o fez estacar. Seus colegas avançaram, deixando-o pra trás, boquiaberto, não acreditando nos seus olhos. Um coquetel molotov cintilou à luz do sol poente e passou ao lado de sua orelha, incendiando a viatura atrás de si. Aquilo o fez acordar, e a passos largos mergulhou no caos à frente sentindo o gás arder à face. A apenas alguns metros da linha imaginária que os separava foi possível confirmar a identificação. Sua cicatriz na orelha ardeu em chamas, a palma de sua mão formigou. As lembranças o tomaram por inteiro num torpor de ódio e rancor. O militar largou seu escudo, arremessou o cassetete de lado e mergulhou na multidão como um jogador de Rugby. Seus braços pareciam dragas removendo os manifestantes indesejados da frente até que conseguisse tomar seu alvo pela camisa. Em seguida girou, atirando-o ao chão já deitando sobre e imobilizando-o. Agora tinha certeza. Era ela. Sem dúvidas. O terror tomava a face daquela senhora. Suas rugas não eram capazes de apagar tal fisionomia da memória do soldado.
 – Tia Dolores!!! Quanto tempo!!! – disse Afonso de olhos trêmulos num ar psicopata.
Alguns segundos foram o bastante até que Dolores percebesse a bizarra cicatriz que atravessava a orelha do rapaz fora a fora e reconhecesse seu carrasco:
 – Quem é você?! Não! Não pode... Afonsinho!!!??? – incrédula, Dolores perdeu as forças ao relutar com o militar.
A essa altura, um cerco se fechava em volta da dupla entre manifestantes e policiais que defendiam suas causas como gladiadores do asfalto.
 – ISSO!!! Afonsinho Valadares! Escolinha Trenzinho Feliz! Lembrou???!!! Eu esperei a vida toda por esse dia, sua filha da puta! Você vai pagar por cada caroço de milho que entrou no meu joelho, por cada reguada de madeira na palma dessa mão... e olha pra essa orelha! OLHA PRA ESSA ORELHA, SUA VADIA!!!
Tia Dolores chorava feito criança. Era o fim. Sentia o cheiro da morte.

* * * 
Dias se passaram até que Afonso recebesse a primeira visita no Batalhão Especial Prisional. Tiraram sua farda, sua autoridade e sua liberdade. Mas jamais... jamais conseguiram tirar aquele pedaço de orelha de seu bolso. Estava seco, podre e fétido. Mas para Afonsinho tinha o melhor cheiro do mundo: o cheiro de vingança.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Mocidade

Ela estava sentada no meio fio feito uma criança. Pés separados, joelhos unidos repousando os finos cotovelos sobre, mãos envolvendo o queixo parcialmente escondido por algumas madeixas de cabelo. O loiro escorria sobre sua cabeça como um véu, porém amarrotado pela preguiça matinal. Seus olhos lutavam por se manterem abertos, e o resultado disso era um olhar semicerrado, até então disperso. Foi então que notou que minha atenção se voltava pra ela, e após um ou dois disfarces resolveu congelar seu olhar sobre mim. Sua discrição se foi com o sono. Seus olhos agiram como duas flores desabrochando, e o azul daqueles não havia sido percebido por mim. Me tomou como Medusa. Me vi perplexo, surdo, em pedra. Aos poucos, toda a sua infantilidade foi se esvaindo. Suas mãos libertaram seu rosto, afagando o véu dourado que tomou forma instantaneamente. Suas pernas deslizaram e se cruzaram como dois corpos ao coito. Ela apoiou as mãos na calçada e se inclinou levemente pra trás, revelando a protuberância de seios recém-formados que disputavam espaço com sua blusa. Parte de sua barriga à mostra ostentava uma penugem quase transparente que convidava olhares abaixo de seu umbigo. Voltei aos seus olhos, estavam sorrindo, quase que caçoando. Sua boca, estática. Ela passou os dedos por detrás da orelha, retocando seu cabelo. Aquele olhar azul não saia de mim. Incomodava, convidava, me despia e me vestia. 
Vi uma menina com seus prováveis dezesseis anos se tornar uma mulher em dois minutos. E por dois minutos fui menino.         

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Manifesto do pão de cada dia

Poucos perceberam a figura estática de Tião em meio à multidão na Avenida Rio Branco. Ele tinha os punhos cerrados, a boca trêmula, e sua alma era só ódio. Mesmo os esbarrões aleatórios não o faziam mexer um centímetro sequer. Uma granada de gás lacrimogêneo quicou com uma bola sob seus pés, mas seus olhos estavam tão secos quanto seu coração. Ele simplesmente a afastou carinhosamente com o bico da bota, suja de cimento, como quem tira um filhote de cachorro do caminho. Girou sobre os pés e olhou à sua volta, a procura de algo. Em meio ao caos da manifestação, pôde ver uma concentração a alguns metros adiante. E lá estava o que ele julgou de antemão ser o líder de todo aquele pandemônio: um sujeito magro e barbudo, de óculos grossos, camisa vermelha com estampa de um militar de boina, e as iniciais "UFRJ" pintadas em guaxe na testa. O rapaz bradava palavras fortes junto a gotículas de saliva sobre a multidão abaixo, que parecia se alimentar daquilo, fazendo-os inflamar como um furúnculo. Tião congelou o olhar naquela figura e acreditou ser ele o responsável pela maior desgraça de sua vida. Partiu em direção ao jovem como um lince à sua presa. Ao se desvencilhar por entre os manifestantes, atirou alguns ao chão, fazendo com que fosse notado pela maioria. Um jovem gordo tentou impedir Tião segurando-o pela camisa, tomando uma cotovelada que fez seu nariz parecer o chafariz da Candelária. Uma menina se prostrou em sua frente gritando algo em palavras que Tião nunca ouvira. Tomou uma cabeçada nordestina entre os seios caindo sobre mais três ou quatro jovens. A multidão se abriu para Tião como nunca se abrira à Tropa de Choque, e no meio estava o suposto líder, boquiaberto, deixando o megafone cair ao chão. Tião avançou mais alguns passos, parou a alguns centímetros do rapaz, que pôde sentir o hálito de arroz e ovo daquela larga boca, de lábios rachados pelo sol. Tião olhou para o prédio ao lado em chamas e se voltou ao rapaz:
“ – Seus filha da puuuuta!!! ‘Cês ‘botaro’ fogo no ‘melhó’ ‘putêro’ do centro da cidade. Cambada de freeeeesco!!! Tem tudo que morrêêêêêê!!!” 
E num golpe de vista, sacou sua peixeira de sua bolsa tira-colo abrindo o bucho do universitário fora a fora. 
Horas depois Tião se apresentou à delegacia local calmamente. Sua vida não fazia mais sentido.    

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Pássaro de ferro


O sol castigava a tarde de terça-feira. Buzinas de automóveis tocavam uma sinfonia dissonante, fazendo da Avenida Brasil um palco do caos. Leleco estava sentado sob a sombra do viaduto que cortava o Parque União e estava ansioso pra se livrar de tudo aquilo. Enfiou a mão em seu bolso e após cinco ou seis tatos, envolveu a pequena pedra na palma de sua mão. Sorriu pra si mesmo; sua boca salivou. Olhou ao seu redor e não foi difícil até que encontrasse um copo de Guaracamp em bom estado jogado ao chão. Lixo pra uns, um narguilé ornamentado em ouro para Leleco. Pegou o objeto, preparou tudo com precisão cirúrgica e deu início à sua viagem. O vapor exalado do interior do copo imitava o turvo que dançava sobre o asfalto. Para a tristeza de Leleco, a pedra derreteu mais rápido que esperava. Contudo, o torpor repentino atingiu o rapaz como um soco. O copo caiu de suas mãos, rolando até o meio-fio da avenida. Leleco esticou seu corpo ao chão, que agora parecia o gramado da Quinta da Boa Vista. Tudo parecia belo. A poucos metros avistou Jennifer e sua enorme barriga, aos sete meses de gravidez, e podia jurar que era seu filho. Imaginou um bebê, rasgando o umbigo de sua parceira e flutuando até seus braços, logo ele se tornava uma enorme pedra de crack, fazendo Leleco rolar de rir. Olhou para o céu, com seus olhos encharcados de lágrimas, porém de felicidade. Via os carros passarem como borrões de guaxe no viaduto acima, e por um momento eles pareciam flutuar. Desejou que os carros voassem e começou a rir estupidamente de novo. Quando de repente viu um ônibus romper a grade de proteção e tomar os céus. Para Leleco, aquela cena durou horas até que o pássaro de ferro se cansasse de seu voo e aterrissasse ao chão com um estampido ensurdecedor, quase implodindo o cérebro do rapaz.  O mundo tomou um silêncio jamais percebido. O torpor se esvaiu feito fumaça, minutos após, bombeiros e policiais retiravam corpos dilacerados das ferragens. E um vermelho triste coloriu a visão do viciado.
Leleco nunca mais usou crack na vida. 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A merda da verdade


    Raquel repousava a cabeça sobre o braço, deitada na cama observando a pesada respiração de Marco Aurélio. Olhou pro seu dedo anelar e podia ter certeza que a marca não estava nítida o bastante pra três anos e sete meses de casados. Passou a aliança de dedo em dedo, comparou à sua, encaixou em seu polegar e a envolveu nas mãos. Não podia mais guardar tanta aflição dentro de si. Não podia passar de hoje. Ainda conseguia ver a preciosa joia jazendo sobre o frio mármore do banheiro. Cutucou seu marido uma, duas vezes, até que ele se virou. Não contente, passou pro outro lado da cama e acariciou os cabelos intensificando a pressão dos dedos para que Marco acordasse.
“ – Que que foi, amor? Não são nem sete horas, porra...” – Reclamou Marco pressionando o travesseiro sobre a cabeça.
“ – A gente precisa conversar, Marco Aurélio.”
“ – tsc... Não pode ser amanhã, semana que vem, num ano bissexto, amor?”
“ – Não posso mais adiar isso. Tá remoendo dentro de mim. “

Marco Aurélio desistiu, coçou os olhos, bocejou e se virou pra sua amada.

“ – Então fala, amor. O que que tá te incomodando?”
“ – Então. Eu tenho uma coisa seríssima pra te perguntar. Mas você tem que ser muito sincero comigo porque eu não vou admitir...
“ – Fala looooogo, Raquel, nunca te neguei nada, você sabe disso...”
“ – Tá!!! Então me responde: por que você vive tirando a sua aliança e largando no banheiro? Já é a sexta vez que isso acontece!!!”

Incrédulo, Marco desaprovou a pergunta da moça e passou as mãos nos rosto.
“ – Não acredito que tu me acordou pra perguntar isso, Raquel. Porra... eu esqueci... simplesmente esqueci...”
“ – Ah, então você vive esquecendo nosso casamento assim? No banheiro, onde vivem as baratas?”
“ – Pelo amor de Deus, Raquel... tirei pra não ficar preta... pra conservar e tal”
“ – Deixa de ser mentiroso, Marco Aurélio, você comprou isso na HStern, isso nunca vai ficar preto!!! – Disse Raquel sacudindo a aliança a meio palmo do rosto do marido.
“ – Não é só isso. Tenho certeza que tem alguma coisa que você não quer me contar. Mas pode contar, vamos lá, eu sou forte.”
“ – Esquece isso, Raquel, porra...”
“ – MARCO AURÉLIO, ou você me conta o que tá acontecendo agora ou eu vou pra casa da mamãe e só volto quando...”
“ – Ah, porra! Parabéns, você conseguiu! Quer saber a verdade? Então eu vou te falar a merda da verdade e espero que tu engula e pare de encher a porra do saco!
Raquel secou uma lágrima e cruzou os braços:
“ – Então vai, Marco Aurélio, me diz por que você tira a aliança.”
“ – Eu tiro essa porra porque sempre que vou passar sabonete no meu rabo, essa merda enrosca nos cabelos do meu cu e dói pra caralho! Satisfeita!!!???”

Raquel não esboçou o menor sentimento. Simplesmente se deitou e dormiu até meio-dia. Satisfeita.

terça-feira, 29 de maio de 2012

É assim pra todo mundo, Otávio.


    Otávio pediu outra cerveja batendo o casco vazio no  balcão. Tinha os olhos cansados, cabelos bagunçados e a camisa semiaberta, mostrando sua medalha de São Jorge que se emaranhava nos pelos do peito. O garçom abriu a garrafa a dois palmos de seu rosto e o alertou:  “ – Essa é a saideira, senhor. A gente já vai fechar.”
“ – Foda-se. - pensou Otávio – ...senhor...”. Olhou seu relógio de ponteiros os quais se embaralhavam; traiam sua sanidade. Eram três, quatro da manhã? Pouco importava. Sua razão foi dilacerada há algumas horas, quando ouvira aquelas malditas palavras. Estavam elas rebatendo em sua consciência feito ressaca de vodca. Tentava aceitá-las, mas o ódio que se escorava em sua garganta o sufocava, acentuava o amargo de cada gole de cerveja. Era vil. Podia ouvir os demônios em sua mente: “ – Vai deixar? É assim mesmo?” Diziam isso e riam estridentemente, segurando suas barrigas e rolando ao chão. Otávio era todo ódio. Mal notou que o sangue de seus dedos havia sumido de tanto que contraíra suas mãos sobre a garrafa. Matou quatro goles de uma só vez, atirou vinte reais sobre o balcão saiu desnorteado.
    Lá fora, as palavras continuavam a ressoar. Agora pareciam ser sussurradas no pé do seu ouvido... “Você...” – enquanto abria a porta do carro – “ - ...sabe como é...”. - Trancou a porta. O mundo parecia caçoar dele. - “...não dá...” – Deu partida no motor e saiu cantando pneu. As palavras silvavam junto aos postes que simulavam borrões no canteiro central da pista. Otávio ligou o rádio e aumentou o volume, o refrão da música explodiu nos autofalantes traseiros: “MENINA VENENO, O MUNDO É PEQUENO DEMAIS PRA NÓS DOIS”. Socou o volante, o painel e o rádio até que se calasse. Estaria o mundo a conspirar com sua infelicidade? A estrada se projetava sob a luz dos faróis, convidativa. Logo, foi tomado por uma tênue calma. Os demônios em sua mente se calaram, porém convidaram sua mão direita a engatar a quinta marcha lentamente. Ele obedeceu. Sua mão esquerda tomou um peso estranho, fazendo com que se repousasse em seu colo. O volante oscilava na medida em que os pneus tocavam as irregularidades do asfalto. Novamente as palavras vieram claras e lentas à sua mente. Ele fechou os olhos e balbuciou-as em sincronia. Podia sentir o arquejo em sua orelha. A boca pintada de batom vermelho daquela jovem, proferindo:
 “ – Você...é...velho...demais...pra...mim...”.

     

sábado, 19 de maio de 2012

LEI Nº 871/2011


    Fazia três meses desde que paçoca deixara Bangu 1. O cheiro de liberdade preenchia suas narinas feito perfume. Até a poluição sonora do chorar dos automóveis na Avenida das Américas parecia música aos seus ouvidos. Não mais sentia dor ao fazer suas necessidades fisiológicas, seu ânus estava quase recuperado. Agora Biela não mais podia violá-lo, pois ainda tinha longas décadas a cumprir em sua Alcatraz. Aquele nego maldito, pensou mordiscando uma barra de cereal surrupiada, sentado no caixa da farmácia. O emprego não era dos melhores, mas dava para bancar a fralda de seu moleque - Pampers num rola - dizia à sua jovem patroa, tem que ser a do Seninha. Mais barata que a paçoca de praxe do fim de semana. Só carreirão de dez, afinal sustentar os nove às seis de sexta-feira era doído.
    O rapaz estava perdido em seus pensamentos - tão distraído como quando Biela empurrava-o secamente segurando seus braços, nem tentava resistir, era inútil - quando três viaturas da Polícia Civil surgiram no estacionamento do estabelecimento. Manobraram, em posição de alerta, e de uma delas desceu um agente: corpulento, camisa polo, calça jeans, tênis surrado, barba por fazer, óculos escuros, mascando chiclete... e as duas saudosas .40 oxidadas na cintura ostentando o poder da razão. Paçoca estremeceu, seu ânus alargara generosamente. Mal podia conter a barra de cereal no intestino. Escondeu a embalagem debaixo do teclado, limpou a boca. O agente estava à dois passos, inspirava medo. Paçoca desejou ter Biela ao seu lado pra abraçar suas pernas, feito criança. Tô fodido, rodei de novo. Pensou em fugir, mas suas pernas não o obedeciam. Então se entregou. Quer matar, mata, pensou. O agente tirou os óculos, deu duas ou três mascadas no chiclete e fitou o rapaz, que agora tinha as axilas úmidas, uma pizza Domino's tamanho família se desenhara sobre o uniforme. A autoridade repousou o cotovelo pesadamente sobre o balcão, olhou dentro dos olhos de Paçoca e disse:

" - Tem Omeprazol de vinte?"

Paçoca se cagou de alívio.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Cadê o picles?

A tarde caia preguiçosa. O relógio da praça mostrou escaldantes 34º que logo se transformaram em 17:48 h.
" - Fim de expedieeeente, Araújo!!!" Comemorou o sargento Torres apertando o trapézio do colega.
" - Graças a Deus, sargento! Vou ligar o giroscópio e meter o pé desse trânsito antes que apareça alguma pica pra gente." Respondeu o cabo Araújo rasgando a pista esquerda da Avenida Cesário de Melo. Os carros se afastavam feito ovelhas adestradas para que a viatura passasse.
" - Ah, Que se foda o Sérgio Cabral, Araújo. Liga esse ar-condicionado aí. Calor da porra."
" - Ihhh! Deu ruim, sargento! Olha quem tá ali na frente... tenente Paiva..."
" - Que que esse corno tá fazendo na pista a essa hora? Boa coisa não é... Vai empurrar pra gente, quer apostar?"

Ambos esboçaram falsa simpatia ao parelhar a viatura ao lado de Paiva.

" - Boa tarde, tenente".
" - Boa tarde, senhores. Encosta a viatura ali na frente que eu tenho uma boa pra vocês."
" - Fodeu, sargento. É hoje que a gente não vê Big Brother." Comentou Araújo ao estacionar de qualquer jeito.

Os policiais desceram da viatura disputando cansaço. Havia sido um dia cheio. O calor ardia em suas têmporas.

" - É o seguinte, senhores. Tem um corpo aqui nesse terreno. Mas já mandei adiantar tudo. Já tá ensacado e identificado. Vai até com fritas e refrigerante grande. Só fazer um delivery ali no necro do Rocha Faria. Molezinha... Boa tarde pros senhores. Bom final de expediente. (...) E óh... Quem achou foi vocês, hein." - Acrescentou Tenente Paiva, ao entrar em sua viatura saindo em seguida.

O sargento coçou a cabeça, abriu a mala da viatura e advertiu a si mesmo:
" - Minha mãe ainda mandou eu estudar. ' - Não, mãe. Não! Eu quero ser puliça! Eu quero ser puliça! 'Taquilpariu, tenho mais é que me foder mesmo. 'Bora, Araújo, pega daquele lado lá. No três, joga."

Bateram a tampa da mala e entraram no veículo.

" - Caralho, que pica que a gente foi arrumar uma hora dessas, sargento!!!"
" - Esquenta não, Araújo. Entra na emergência com esse puto e pede socorro. Pra gente o defunto tá vivo ainda. Larga na mão do médico e sai pra tomar um café. Quando eles ver que o defunto tá morto a gente já tá no batalhão. Só abre o lençol um pouco pro defunto respirar, foda-se."

O alarde foi total quando a viatura freiou bruscamente na porta da emergência do Hospital Rocha Faria, enfermos de muletas, grávidas e criancinhas saíram da frente para que o sargento entrasse a passos largos bradando: " - Ô maqueiro! Maqueirooo! Chama o maqueiro aí, porra!" Logo, a porta se abriu com uma porrada e estava de volta Torres junto ao maqueiro.

" - Leva direto pra sala vermelha que esse aí tá fodido a vera!" - Ordenou o cabo Araújo que já estava com o embrulho nos braços, depositando-o em seguida sobre a maca.

" - Ô maqueiro, a gente vai tomar um suco ali na cantina e já volta. 'Tamos junto ai." E logo, entraram na viatura. A luz de ré se apagou ao final da manobra e o cabo Araújo já havia engatado a primeira marcha quando a porta da emergência se abre novamente com o maqueiro gritando: " - Ô sargento!!! 'Pera aê!!! 'Pera aêêêê".
Torres, impaciente, saiu do veículo dando uma bela de uma porrada na porta. O maqueiro se aproximou do ouvido do sargento e sussurou algo que fez com que ele levasse a mão à testa e voltasse à viatura desconsolado. Acendeu um cigarro, inclinou seu corpo para se igualar a Araújo, deu um longo trago e disse:

" - Puta-que-o-pariu, Araújo!!! Como é que tu me esquece a cabeça do cara na mala?"

domingo, 8 de janeiro de 2012

Ao senhor

Eu realmente nunca esperei que viesse. Nunca acreditei que realmente se importava. Como fui burro em, um dia, te levar a sério se vestindo desse jeito. De todas as palavras que procurei no dicionário da minha mãe, "patético" foi a única que parecia dizer o que penso quando lembro de você. O pior de tudo é saber que você não é homem o bastante pra vir me dar alguma explicação. Vai ver a idade já confunde sua cabeça. Já está como meu avô, se cagando pelos corredores.

Essa não é uma tentativa de dizer o quando te odeio, porque sei que nem deve ler essa carta como fez com as outras quatro que te mandei. É só pra que depois não digam que não avisei. Meu nome é João Paulo da Silva Severo e estou indo pra sua casa tirar a sua vida. Tenho nove anos, uma faca e muito ódio no meu coração. Por todas as vezes que passei a noite de Natal na janela esperando que trouxesse um maldito Playstation 2.

PS: não adianta se arrepender. Agora é tarde. Já até lançaram o 3 e meu pai vai comprar pra pagar em 24 vezes nas Casas Bahia mesmo.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Café da manhã

Três colheres de açúcar foram o bastante para que Souza se desse por satisfeito. Logo, afastou o pingado para o lado, cortou o pão em três pedaços, como sempre fizera, e dobrou o guardanapo de forma triangular religiosamente. Ao mordiscar o pedaço de pão, percebeu que a manteiga não estava derretida. Pediu à garçonete que desse mais duas demãos e que requentasse. Aguardou pacientemente. Souza estava muito bem consigo mesmo. Tomou seu café da manhã como um rei. Limpou sua boca , redobrou o guardanapo e depositou dentro do copo, agora vazio. Reuniu os farelos de pão e fez o mesmo. Olhou por cima dos ombros. Ele ainda estava ali sentado. Deslizou sua mão até a cintura, sacou sua quarenta-e-cinco discretamente e caminhou para a saída. Ao passar por Augusto Cunha dos Santos, encostou a gélida ponta na nuca do rapaz, que ainda teve tempo de esboçar um olhar indireto sob a face de sua morte. Era tarde demais. Com o seco estampido, migalhas de osso disputaram espaço com massa cefálica e sangue sobre a mesa. Todos no recinto estavam perplexos.
Souza guardou sua arma novamente, lamentou sobre os respingos vermelhos sobre a blusa de uma senhora à sua frente e parou na saída. Estalou os dedos, olhou pra cima. O céu estava limpo. Ia ser um lindo dia. Pensou.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Volte pro berço

Seus olhinhos amendoados eram tão serenos. A cabeça se equilibrava sobre o pescocinho frágil, oscilando ora para a frente, ora para trás. Em sua boca, nenhum dentinho havia. Nas horas de refeição usava um cômico babador. Balbuciava algo indecifrável e jogava mingau para todos os lados. Não podia ficar só por um minuto: arrancava suas fraldas e sujava todo o chão. Ao menor descuido, seus curtos passinhos poderiam se tornar seus maiores inimigos, e lá estava ele no chão, chorando com o joelhinho todo ralado. " - Está na hora do 'remedinho'". Diziam. E ele caia em prantos ao ser obrigado a tomar uma pequena colher de xarope. Acordava no meio da noite com pesadelos terríveis e precisava ser acalentado até acreditar que estava tudo bem. E cinco minutos depois, estava ele dormindo de novo com a boca aberta. Teria ele a vida inteira pela frente? Não... Sr. Agenor morreu sentado na cadeira de balanço em sua varanda com um infarto fulminante. Sem dó, sem honra, sem filhos por perto.
Um feto... sem afeto... fétido...

domingo, 2 de outubro de 2011

Luso-luxo

Isabel olhava distraída para o cafezal à sua frente e tocava os lábios com a ponta dos dedos vagarosamente. Seus olhos possuíam um brilho incomum. O dia parecia mais completo. Acariciou seu ventre e notou que ainda podia senti-lo dentro dela: imponente, selvagem e calculista. A lembrança daqueles olhos contrastantes sobre seu corpo frágil e tímido demoraria dias, quem sabe anos, até que se esvaísse. Fora tão inesquecível que Isabela mal se deu conta que estava prestes a se masturbar em pleno escritório. Levou as mãos à cabeça, respirou fundo e sorriu pra si mesma. Logo, abriu a gaveta, tomou uma folha em branco, embebeu sua pena com tinta preta e começou a escrever como nunca escrevera. Ao terminar, assinou seu nome por completo ao fim do documento e intitulou-o por “Lei áurea”.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Você vai voltar?

A noite devorava cada canto do beco. Algumas caixas de papelão empilhadas imitavam arranha-céus. Um feixe de luz oscilava por debaixo de uma porta surrada, marcada, provavelmente, pelas entradas e saídas de carrinhos de descarga. Foi ali que ele, amedrontado, tateando a gélida parede, inalou um longínquo odor de queijo. Seu coração palpitava tão forte que podia ouví-lo, grave e intermitente. Tomou coragem e seguiu em frente. Ao ultrapassar a porta, a luz explodiu em seus olhos como que um nascer do sol. Sua respiração parecia ter vida própria; sem controle. Agora o cheiro estava mais intenso e o conduzia com um leve torpor. Desvencilhava-se por entre gigantes de aço, passo a passo, hesitante, até que estacou diante da fonte que emanava a extinção de sua fome: um generoso pedaço de queijo nas entranhas de um corpo estranho de metal. Seus olhos percorreram aquele objeto inerte, que não esboçara reação alguma ao seu primeiro toque. Aquele cheiro convidativo tomou suas forças e o fez abrir a boca, encharcada de saliva, sedenta. Estava a menos de um centímetro, sentia o triunfo, o fim do sofrimento lentamente se aproximando, quando de repente, em menos de um centésimo, um estampido subtraiu seus cinco sentidos instantaneamente. Sentia seu pescoço ser dilacerado. Seus olhos embebidos de sangue concediam uma visão turva do queijo à sua frente, inalcançável. Já não podia distinguir o que era a dor e o que era dormência. Seu corpo foi tomado por inércia e a única coisa que restou foi uma distante lembrança de como estariam seus cinco filhotes recém-nascidos no ninho. Fora sua primeira e última ratoeira.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

O preço do troco

Almeida fumava um cigarro sentado na sacada da varanda. Enrolava um tufo de cabelos distraidamente, olhando para a "incandescência" de seu Marlboro. No momento comparava a efemeridade de suas ambições com a fumaça que gingava sedutora por entre os dedos. Patricia Silva respirou fundo e se virou na cama no quarto ao lado. Almeida recostou-se na janela e ficou a admirar o sono profundo da mulher. As linhas de seu corpo já não pareciam tão interessantes. Seu cheiro impregnado no pescoço de Almeida chegava a incomodar; a sufocar a singularidade. Ele ainda tinha o gosto dos fluídos da moça por toda a língua: era cítrico e o fazia salivar até cuspir. Agora, Patrícia dormia de boca aberta. Dentro de instantes, estaria babando no travesseiro. Inconsciente, coçou sua perna, marcando um vergão que disputava espaço com o branco de sua pele. Fora sua primeira vez com ela. Parecia ser a sétima. Estava farto. Patrícia parecia bem mais sensual na foto do Orkut. Almeida deu um último trago e descartou seu cigarro do décimo segundo andar. Lá em baixo, distante de seus olhos, a guimba parecia mais acesa que enquanto em suas mãos.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Âncora sexual

Foram meses de investimento! Juan havia deixado até seu bigode crescer ao saber que ela assim gostava. Periciou seu perfil no Facebook em busca de evidências. Descobriu seus gostos, suas preferências, montou um mosaico no seu quarto: fotos penduradas, anotações, fragrâncias de perfumes fixadas em guardanapos. Um trabalho e tanto! E agora estava ela ali, deitada em sua cama, com o dedo indicador na boca e outra mão acariciando a barriga. Cima a baixo...
Juan dedicou sua vida àquela noite. Tudo parecia perfeito: a iluminação à velas, a música ambiente, a temperatura do quarto. Ele havia até deixado o banheiro se encher de vapor da água do chuveiro e grafou no espelho: "te espero na cama..." Escolhera sua melhor cueca, passara hidratante em seu abdômen e raspara o pubis até parecer um menino de cinco anos. O conquistador apagou a luz de vez fazendo com que as velas dessem um tom alaranjado à silhueta da moça na cama, a qual abriu as pernas e o abraçou como um casulo. O prazer era infindável... Tinha tudo pra dar certo. Juan beijou levemente o pescoço da mulher, passando em seguida para o seu busto. Mordiscou sua pele e a alça de sua blusa, arranco-a como um cão tomando seu filhote pelo lombo; preciso e delicado. As aréolas de seus seios estava sólidas; ardia por prazer. Depois de beijar toda a barriga, Juan deitou-se sobre a moça, rosto com rosto, e começou a desabotuar a calça que o deixaria a um passo de seu sonho. Olhos nos olhos, o rapaz puxou o que restava de roupa em sua musa e atirou para o lado. Aquele vulto tomou sua atenção. Por um momento não acreditou em seus olhos e tentou dar continuidade ao seu ritual, mas sua visão periférica não o deixava em paz. Olhou novamente e a essa altura sua mente já estava encharcada de perturbação. Percebeu que por conta disso mal tinha uma ereção. A mulher o desejava! Arranhava suas costas, insaciável. Porém Juan estava em outra dimensão. Só tinha olhos para aquilo que acabara de lançar ao chão. Tentou se lembrar de todos os filmes pornôs que assistira na vida: anal, animal, tântrico, necrófilo! NADA! Sua libido estava sendo torturada no tapete... ao lado daquela horrível calcinha bege da Demillus.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

A infidelidade do romance policial

A viatura policial do 31º batalhão chegou com discrição no estacionamento do Mc Donald's, de onde Borges desceu arrastando a bandoleira de seu Colt M4 no chão, preguiçosamente. Logo, deu um último trago em seu cigarro e se dirigiu a Farias, ainda dentro do veículo:

" - Vai 'querê' um Big Mac, Farias?"
" - Não, Sargento. 'brigado'."

Borges empurrou a porta do estabelecimento com o bico do fuzil e sumiu da vista do soldado.
Parecia uma noite tranquila. Nenhuma ocorrência até então, só se ouvia o som estacado de música eletrônica ao longe, num bar qualquer, onde a burguesia refogava os valores mundanos.

Farias retirou sua boina e secou o suor de sua cabeça. A brisa da orla não tocava a Avenida das Américas. De repente uma luz sólida tomou o interior da viatura e tudo à sua volta. Um Opala preto, de vidros fumês, parou no auto-posto ao lado e desligou-se o motor. O soldado destravou seu fuzil e saiu da viatura lentamente, recostando-se na fria lataria, observando o suspeito com olhar aguçado. Uma fresta de janela se abriu no funesto carro e Farias pode contar rapidamente quatro cabeças ocultas pela escuridão. Farias moveu seu dedo indicador de forma milimétrica até o gatilho e em passos curtos, alinhou sua silhueta atrás de um poste. Dali podia-se ver Borges de costas, no interior da lanchonete de papo com a atendente sorridente, que provavelmente deliciava-se com as histórias sagazes do Sargento.
O Soldado sentiu o que em anos de serviço não vivenciava: a sensação de vida por um fio. O Opala deu partida no robusto motor 4.1 e uma névoa branca tomou suas linhas uniformes. Em seguida arrancou bruscamente fazendo com que os pneus traseiros emitissem um choro lancinante ecoado nos lotes lindeiros da Avenida. Farias não pensou duas vezes antes de saltar por cima do capout da viatura, caindo do outro lado já em posição de assalto. Ao cortar o ângulo de combate, o soldado pôde ver os bicos de dois fuzis apontados em sua direção. Foi nesse momento em que Farias contou seus supostos últimos segundos de vida e por algum motivo desconhecido se deixou levar, recolhendo seu dedo do gatilho, seguido pela mão e em seguida, fazendo um sinal da cruz. Ele tentou fechar os olhos, mas um sentimento de medo mesclado com uma tácita coragem não permitira. Através de luzes borradas, Farias viu o carro tomar distância, ouviu as quatro marchas sendo engatadas gradualmente até que o som maquinante destoasse em seus ouvidos. O alívio do soldado durou apenas dois segundos até que se pôs de pé - com as pernas ainda trêmulas - e correu até a Lanchonete. Chutou a porta com veemência e bradou:

" - SARGENTO! Veículo suspeito em fuga, quatro ou cinco indivíduos possivelmente armados!"

Borges olhou-o boquiaberto, com um pedaço de alface nos dentes.

" - Em fuga de que, soldado?"
" - (...)"
" - Eles pararam no posto e saíram em retirada sentido Barra!"
" - (...) E daí?
" - (...) E daí nada, Sargento."

Todas as pessoas do recinto olhavam, paralisadas. O picles do hamburguer de Borges caiu no chão.

" - Num fode, Farias. Deixa eu comer meu Big Mac em paz, porra."

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Felicidade reversa

Duda tinha seu lanche confiscado todo santo dia na escola. Era gordinho, de cabelos cheios e andava de pernas abertas por conta de suas assaduras. Marreta, um garoto da sétima série, corria atrás de Duda e alcançava-o facilmente, o segurava pelos cabelos e o enchia de mocas, até que seu choro o fazia levar as mãos ao rosto e soltava seu lanche, o qual Marreta pegava e saía correndo. Duda não mais suportava tamanha humilhação e resolveu dar um basta. No dia seguinte, quando Marreta veio em sua direção, Duda jogou seu lanche no chão e o pisoteou. O brutamontes não acreditou no que viu, ainda mais no momento em que Duda levantou seu indicador gordinho em direção a Marreta e proferiu palavras trêmulas:
" - Se eu não como, você também não vai"

Marreta, enfurecido, aproximou-se do menino até ficar cara a cara, com os dentes acirrados, prometendo:
" - Meio dia e meio, no parquinho! Vou arrebentar sua cara" - Saindo em seguida.

Duda sentiu suas pernas fraquejarem, correu para o terceiro andar e trancou-se no banheiro. Sentado na privada, puxava seus próprios cabelos, chorava e tampou os seus ouvidos por horas, confrontando os demônios em sua mente . Nunca brigara em sua vida. Sentia um frio na barriga só de imaginar a imagem de Marreta armando um cruzado de direita em sua face. No ápice de sua lamúria, resolveu orar pra Deus. Pediu que Ele intervisse de qualquer forma para que salvasse seu dia. Expôs suas qualidades, contou quando salvara um cachorrinho abandonado, quando fizera curativo na asa de um pardal ferido e quando ajudara uma velhinha a atravessar a rua. Por fim, secou suas lágrimas e olhou seu relógio: Meio-dia e quinze. Fez o sinal da cruz e saiu para o corredor. Ao chegar no hall do terceiro andar, seu corpo congelou pro inteiro. Estavam estiradas dezenas de corpos de alunos no chão, todos baleados. Alguns ainda agonizavam. Porém, diante da escada, jazia um corpo que provocou uma tremenda serenidade em Duda: o de Marreta, com dois tiros no peito. Uma figura robusta e mal-humorada se projetou diante de Duda com dois revólveres em mãos, Duda permanecia perplexo. Era Wellington Menezes. Ele guardou uma de suas armas, acariciou os cabelos de Duda com um sentimento fraternal e subiu as escadas.
Duda agradeceu a Deus, amarrou seu cadarço e desceu para o segundo andar. Ao passar por Marreta, deu uma bicuda em sua canela e seguiu cantarolando.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Doce e imunda inocência

Sarinha catou as moedas em seu bolsinho, contou-as uma a uma e despejou sobre a mão áspera de sr. Haroldo. Ficou por um minuto decidindo se levaria o pirulito de cereja ou de uva até que escolheu o primeiro, desembrulhou-o e o enfiou na boca olhando de soslaio para Sr. Haroldo e sorrindo em seguida. Ao sair, empinou sua pequena bunda e ainda olhou pra trás dando um novo sorriso, que inspirava algo entre inocência e subjetiva feminilidade de uma puta. Sr. Haroldo, desconcertado, ergueu a mão vagarosamente simulando um “tchau”, boquiaberto com a sensualidade daquela menina que aparentava ter seus oito ou nove anos. Sr. Haroldo começou a suar frio. Sentia-se culpado, mas o calor que subira em suas calças o fez fechar as portas do comércio e correr para o banheiro. E lá foi onde se masturbou tristemente com a imagem da menina lambendo seu pirulito.


“ – Por que você tem que ser assim com essa idade meninaaaaaaaa!!!??? Arrrrgh!!!


(Ejaculação)

sábado, 19 de março de 2011

Quem tem tem medo...

Santana estava aguardando seu nome ser clamado no imundo corredor do Hospital Rocha Faria. Suas hemorróidas corroiam seu ânus feito beliscões de madrasta e se recusara a sentar nas cadeiras da sala de espera. Sua testa suava frio e a cada fisgada que sentia, levava as mãos às nádegas discretamente, como que amansando um cavalo bravo. Santana sentia-se injustiçado com a vida e pensava com seus botões:

" - Nunca dei o rabo, por que eu tô passando por isso, meu Deus?"
Foi quando um médico com seus vinte e poucos anos bradou na porta do consultório 6 com uma prancheta nas mãos:
" - Alejandro!!!"

Santana desencostou-se da parede e caminhou mancando até o consultório, sentou-se com grande dificuldade e cruzou as mãos, olhando para seus dedos polegares girando em volta uns dos outros. Logo, o médico pigarreou e indagou:
" - E então, o que aconteceu, Alejandro?"

Santana mirou o crachá do médico e pode ler "Pablo Siqueira". Levantou as sombrancelhas, projetou seu discurso rapidamente e iniciou:

" - Então, Pablo. Esse final de..."
" - É "DOUTOR PABLO"
" - Como?"
" - É Doutor...Pablo!"

Santana não acreditava nos seus ouvidos. Entortou a cabeça de leve, acirrou os olhos e refletiu sobre sua vida: Já havia passado por maus bocados. Não terminou seus estudos pois teve de trabalhar pra ajudar com o orçamento em casa, trabalhou nos empregos mais imundos, fora um genuíno heterossexual até o dia presente e estava ali, levando esporro de um moleque que pensa que entende de cu. Mal sabia ele que Santana conhecia do riscado, afinal, era frequentador assíduo de todos os puteiros da zona oeste.
Santana assentiu ironicamente, sacou sua pistola trezentos e oitenta e pôs sobre a mesa. Doutor Pablo arregalou seus olhos tanto que pareciam ter hemorróidas, se segurando na cadeira.
Foi então que Santana deu início ao discurso mais emocionante de sua vida profissional:

" - Olha aqui o seu......MOLEQUE.....!!! DOUTOR Pablo né!? Ok... Por acaso você chama o faxineiro de "Faxineiro João!? Por acaso você chama o lixeiro de "lixeiro Zé!?" (Doutor Pablo negava imediatamente). Então daqui pra frente você vai me chamar de "MILICIANO SANTANA". E se você esquecer, eu vou pegar essa arma E DAR UM TIRO NO SEU CU!!! Pra você ver o quanto é bom tá sofrendo por uma coisa que você não deu e ainda ter que ouvir merdinha de um CUZÃO como VOCÊ, que faz uma MERDA de uma faculdade na Estácio e vem pra cá pensando que é malandro. Então agora você vai me ouvir e vai consertar as vinte e uma pregas do meu rabo! E não quero escutar um pio! Ouviu bem!?? OUVIU BEM SEU FILHO 'DUMA' PUTA!?"

Doutor Pablo acordou de um coma induzido e assentiu calado, e, agora, seus dedos mal tinham sangue circulando, pois ele apertava a cadeira que sustentava sua bunda com tanta força que a essa hora já devia ter desenvolvido suas próprias hemorróidas.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Grota funda

Firmino estava sedento por diversão. Fazia 3 meses que não saia de casa pra se entreter. Penteou seu cabelo de lado, espirrou seu Très Marchand na sovaqueira, fivelou sua pochete e saiu de cabeça erguida, orgulhoso de sua auto-estima, hoje inflamada. Sentou-se no boteco do Renato, pediu uma Glacial e ficou a admirar a rua, mas a nostalgia por seu divórcio o tomou por inteiro. Sentiu-se carente e sozinho até o momento em que uma dama rompeu o silêncio de sua alma:

" - Posso tomar um copo contigo?"

Firmino não acreditou em seus ouvidos. Embaraçado, puxou uma cadeira com as mãos trêmulas e reverenciou sua nova companhia. Ela se esparramou, acendeu um Derby e fitou Firmino cima a baixo.
" - E aí, qualé a boa?"

Firmino quase conteve sua extasia, mas tomou um gole e resolveu ir direto ao ponto:
" - Você chupa?"
Ela arregalou seus olhos castanhos, estaria surpresa, senão fosse pelo seu longo currículo. Pediu:

" - Me dá tua mão"

Firmino estendeu sua mão, ainda trêmula. Ela a segurou com a delicadeza de uma enfermeira separou seu dedo maior e enfiou goela adentro. Ao tirar, deu uma longa chupada na ponta. Piscou lentamente e sorriu.
Firmino pediu a conta.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

No Complexo do Alemão...

Era o primeiro sábado de operação policial. Os tiros crivavam os tijolos da parede da cozinha. Lá fora, gritos de desespero ecoavam pelos becos da favela. Cachorros nem se atreviam a latir. O cenário assistido pela fresta da janela era de guerra. Pedro Lucas olhava para o relógio de parede da sala, apreensivo. Eram 13:46, faltava pouco. Mas aqueles minutos pareciam horas. Ele ouvia as rajadas de 7-meia-2 quase que lentamente. Cada disparo parecia um segundo interminável. De repente, Pedro Lucas ouviu um barulho um tanto desconhecido, mecânico e uniforme, assemelhando-se à moenda de sr. Severino que, a essa hora, com certeza, não estaria vendendo pastéis e caldo de cana no pé do morro, visto que o Complexo do Alemão parecia Stalingrado em 19 de Agosto de 1942. Pedro Lucas deu uma outra olhada no relógio: 13:56. Apenas quatro minutos. Seu dedo indicador coçava de vontade de pressionar o botão. O barulho ganhou projeção maior e, agora, Pedro podia sentir que estava ao lado de sua casa. Tomou coragem, inflou o peito com ar e abriu a janela pra ver o que era: um blindado do exército subia sua rua, imponente, à todo vapor. Pedro Lucas não acreditava no que seus olhos viam. Um tanque de guerra, ali?
O veículo girou sua ponto-cinquenta, erguendo-a em direção a casa de Pedro, que ficou em choque ao constar que a ponta da arma era tão comprida que podia alcançar os fios da instalação telefônica de sua residência. O soldado que manejava a arma notou o espanto de Pedro Lucas e mandou que seguissem em frente. Foi aí que aconteceu o que Pedro mais temia - era o fim. Seu mundo caiu por terra: O blindado arrebentou o fio do telefone. Eram 14:00 em ponto. Horário da tarifação única de sua internet discada. Era o início de um fim de semana sem Orkut, MSN e Twitter. Pedro Lucas desejou a morte.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

É coletivo...

O sujeito veio oscilante, arrastando a perna que lhe restara com o auxílio de um pedaço de madeira envolvido com trapos encardidos. Os vendedores ambulantes se desvencilhavam dele como de um cão de rua. Esbarravam as mercadorias nos seus finos braços atrelados aos ferros do vagão. O trem em movimento sagaz desconcertava seus passos a cada solavanco. E ele persistia em caminhar. Passo a passo, singular. Seus ralos cabelos caiam sobre a testa suada, acima de um rosto cadavérico. Sua pele se apegava aos ossos. Tinha um olhar distante, quase entorpecido, que já não distinguia a extensão a ser percorrida. Espalhou pelo vagão seu odor de fezes e urina. Uma senhora não disfarçou ao levar as mãos ao nariz enquanto o sujeito se arrastava pedindo esmolas. Uma onda de compaixão tomou todos os passageiros presentes. Um senhor, com sua camisa furada e seus sapatos de solas descoladas, tateou o fundo de seu bolso até extrair algumas moedas e depositá-las nas mãos do miserável. Uma jovem mulher abriu sua pequena bolsa de moedas e virou-a de ponta cabeça, doando todo seu conteúdo. Idosos abriam seus embrulhos plásticos envoltos por elásticos e retiravam notas de dois Reais, outros, até cinco. Pessoas se levantavam a todo instante e davam um pouco de si, materializados no imundo dinheiro. Aquela cena me tomou de um orgulho imensurável. Vi pessoas que não têm o que merecem ter, doarem o pouco que tinham em mãos, como se fosse um pedaço de seus corpos. Reconstruindo, assim, a perna daquele indivíduo. O ajudando a caminhar. Motivando-o a seguir em frente. Mesmo com suas desgraças, com um futuro previamente condenado, ele estava ali. O trem balançava a cada curva, ele se desequilibrava, mas não caía. Talvez aqueles tristes olhares sobre seu corpo imundo, o mantinham de pé. De uma compaixão que nunca, um nobre, em toda a sua riqueza, irá experimentar um dia. Era o amor mais puro do mundo, sobre uma figura fétida, miserável, que mal media seus passos diante do longo caminho de oito vagões que o esperavam pela frente.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Pipoca é a alma do negócio

O clima escaldante fazia com que minha testa gotejasse suor feito água. Uma visão turva sobre o cenário férreo na estação de São Francisco Xavier, na esperança de que o Santa Cruz aparecesse como uma miragem nos contornos do Maracanã. Em meio a faces fadigadas de trabalhadores que olhavam para o mesmo horizonte evaporando, avistei um vendedor ambulante saltando plataforma abaixo e cruzando a linha com um enorme fardo de pipocas no ombro. Atrás dele, se projetava um vagão vindo em alta velocidade, buzinando insistentemente. Um senhor ao meu lado fumava um cigarro, despreocupado observando o vendedor, agora escalando a plataforma seguinte, onde parou de pé sem o menor sinal de exaustão. Logo, o trem de Japeri passou soando a buzina como um triste choro. O senhor deu um útimo trago e atirou sua guimba de cigarro sobre a linha. Perguntou ao vendedor, sem compromisso:

" - Nenhum de vocês já não morreu atravessando essa linha?"

O vendedor tirou seu boné, passou a mão sobre os ralos cabelos, fitanto o senhor.

" - Meu 'sinhô', eu tenho mais de vinte 'ano' de pista aqui. Sô de bobeira não..." e saiu gritando:
" - Pipoca macia e crocante é um reaaaal!"

O senhor assentiu e ficou pensativo olhando o vendedor se distanciando. Depois se virou para mim e disse com a maior segurança do mundo:

" - Vinte anos!? P#t% que o pariu... Essa p*%ra deve dar dinheiro mesmo..."

Eu por fim, poderia ter uma visão antropológica e refletir sobre a vida daquele indivíduo trabalhador sem escolhas, talvez. Mas o calor me ardia as têmporas. Preferi concordar falsamente e rir comigo mesmo.
A vida é uma Comédia Dell'Arte - pensei.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A que se vive, a que se come

Sr. Matarazo almoçava à negócios em sua majestosa mansão em Angra dos Reis, com Charles Craine, seu futuro sócio. Desculpava-se com Charles pelas obras em andamento nos cômodos vizinhos. Estava sendo instalada uma banheira maior de hidromassagem e uma academia particular no andar acima.
Sr. Matarazo, muito cordial, convidara "seu Severino", pedreiro responsável pela obra a almoçar à mesa, em sua companhia e de Sr. Charles, tal qual não apreciou muito a ideia de dividir o mesmo ambiente com um peão, segundo ele, sem escrúpulos e um tanto indelicado.
Seu Severino chegou humildemente, retirou seu boné de propaganda política e sentou-se a mesa, ainda tímido. Sr. Matarazo mandou que ficasse à vontade e que se servisse, logo abrindo um diálogo enquanto servia-se de ostras
à portuguesa:


" - Ah! O que mais na vida combina tão bem quanto ostras e um bom vinho?"
" - Alheira de mirandela" - Sugeriu Sr. Charles.
" - Muito bem lembrado, Charles, muito bem lembrado.
" - Uma Dodge Ram e um dia de chuva no campo" - Retrucou Sr, Matarazo

Seu Severino ouvia cabisbaixo sem intrometer-se no assunto, mastigando calmamente.

" - Um puro sangue e uma sela Ruiz Diaz" - Retomou Sr. Charles
" - Meu taco de golf e minha notável habilidade. Modéstia a parte" - Disse Sr. Matarazo sorrindo e em seguida, completando:
" - E você, Severino? Dê uma sugestão tão prazeirosa quanto as nossas!


Seu Severino palitou os dentes, pensou por poucos segundos e falou com toda a certeza do mundo:

" - Um banho quente e uma 'mulé' safada".

Os dois entreolharam-se espantosamente e seu Severino permaneceu impassível, limpando seu molar, agora com dois dedos dentro da boca.
Charles voltou a atenção à lagosta em seu prato e Sr. Matarazo refletia o pensamento de seu Severino.

" - Você é um sujeito muito esperto, seu Severino... Muito esperto!"