A
cortina de fumaça de gás lacrimogêneo era transfixada por pedras e outros
objetos surpresa que martelavam o escudo do Soldado Afonso em uma latência
dissonante. Os gritos e incêndios simulavam um cenário de guerra na Avenida
Presidente Vargas. Era mais um dia de protesto. Um morteiro ricocheteou o
asfalto e explodiu no coturno de Afonso, fazendo com que baixasse a guarda. Foi
quando, em meio ao cordão de manifestantes que avançavam, o soldado avistou
algo que o fez estacar. Seus colegas avançaram, deixando-o pra trás,
boquiaberto, não acreditando nos seus olhos. Um coquetel molotov cintilou à luz
do sol poente e passou ao lado de sua orelha, incendiando a viatura atrás de
si. Aquilo o fez acordar, e a passos largos mergulhou no caos à frente sentindo
o gás arder à face. A apenas alguns metros da linha imaginária que os separava
foi possível confirmar a identificação. Sua cicatriz na orelha ardeu em chamas,
a palma de sua mão formigou. As lembranças o tomaram por inteiro num torpor de
ódio e rancor. O militar largou seu escudo, arremessou o cassetete de lado e
mergulhou na multidão como um jogador de Rugby. Seus braços pareciam dragas
removendo os manifestantes indesejados da frente até que conseguisse tomar seu alvo pela camisa. Em seguida girou, atirando-o ao chão já deitando sobre e
imobilizando-o. Agora tinha certeza. Era ela. Sem dúvidas. O terror tomava a
face daquela senhora. Suas rugas não eram capazes de apagar tal fisionomia da
memória do soldado.
– Tia Dolores!!! Quanto tempo!!! –
disse Afonso de olhos trêmulos num ar psicopata.
Alguns
segundos foram o bastante até que Dolores percebesse a bizarra cicatriz que
atravessava a orelha do rapaz fora a fora e reconhecesse seu carrasco:
– Quem é você?! Não! Não pode... Afonsinho!!!??? –
incrédula, Dolores perdeu as forças ao relutar com o militar.
A
essa altura, um cerco se fechava em volta da dupla entre manifestantes e
policiais que defendiam suas causas como gladiadores do asfalto.
– ISSO!!!
Afonsinho Valadares! Escolinha Trenzinho Feliz! Lembrou???!!! Eu esperei a vida
toda por esse dia, sua filha da puta! Você vai pagar por cada caroço de milho
que entrou no meu joelho, por cada reguada de madeira na palma dessa mão... e
olha pra essa orelha! OLHA PRA ESSA ORELHA, SUA VADIA!!!
Tia
Dolores chorava feito criança. Era o fim. Sentia o cheiro da morte.
* * *
Dias
se passaram até que Afonso recebesse a primeira visita no Batalhão Especial
Prisional. Tiraram sua farda, sua autoridade e sua liberdade. Mas jamais...
jamais conseguiram tirar aquele pedaço de orelha de seu bolso. Estava seco, podre
e fétido. Mas para Afonsinho tinha o melhor cheiro do mundo: o cheiro de
vingança.
Cadê você?
ResponderExcluirAss. Daniele Marques