quarta-feira, 28 de abril de 2010

Lealdade canina



Os dias que precederam sua morte foram tênues. Meus outros cães pareciam, de alguma maneira, respeitar seu espaço. Como um leito único. Sua pele e pelos se apegavam aos ossos. Negava-se a comer e beber qualquer coisa ofertada. No entanto, inspirava gratidão com uma tentativa de balançar o rabo fracamente. E assim se estendeu por três dias. Na noite anterior, consegui aquecer seu corpo com alguns cobertores e fiz com que bebesse uma dose de leite morno, forçadamente. Ela se deitou tranquila, de olhos fechados.
Na manhã seguinte acordei. Ansioso, fui conferir sua melhora e uma tristeza tomou conta de mim ao ver que ela se encontrava ofegante, dando curtos suspiros e esticando seu corpo, involuntária. Esperançoso, me agachei e acariciei sua barriga levemente. Em seguida, me levantei depressa a fim de pegar um analgésico e um pouco de leite.
Ao sair, senti vontade de olhar pra trás e ao fazê-lo, vi que ela me olhava com tremendo esforço por não conseguir mover a cabeça, virando suas órbitas até o limite. De alguma forma, inspirava gratidão. E o mais chocante foi quando balançou seu rabo rapidamente, como fazia ao me ver chegando em casa. Entendi que aquele gesto era um "muito obrigado".
Inconformado com sua suposta despedida, me ausentei por um minuto. Perdido em meus pensamentos, assistindo o copo de leite girando no microondas, já com o analgésico em mãos. Decorrido esse breve instante, voltei e me deparei com seu corpo inanimado, de olhos ainda serenamente abertos. Ali, sentei. Chorei.

domingo, 18 de abril de 2010

A gota de Devassa

Eu precisava de um tempo até seguir caminho. O calor ardia minhas têmporas e resolvi sentar num bar, abrir uma cerveja e deixar a hora passar. Degustando calmamente, de pernas cruzadas e admirando o colégio em que estudei há anos. Boas lembranças escorriam da memória como as gotas do copo suado em minhas mãos. A primeira mulher da minha vida, o cheiro de comida no refeitório, os intervalos no pátio, os mestres, o som do sinal, que hoje, tanta falta faz. Por um momento me senti adolescente. Algumas estudantes me olhavam curiosamente, cochichavam, davam risinhos abafados. Não obstante, aprimorei minha perspicácia sobre tudo que olhava naquele momento e pra tristeza própria, vi que todos eram vazios. Fumavam sem propósito, por uma falsa elegância, riam de piadas insossas criadas por eles mesmos, as belezas das meninas que ali me admiravam, eram plásticas e rasas. Tinham seus grupos separados por cores. Era uma juventude infeliz e não tinham consciência disso. A melhor época de suas vidas estava ali, se comportavam como falsos adultos e mal o sabiam fazer. Senti pena, senti raiva, senti como se aquele fosse o meu lugar, onde mudaria suas maneiras de pensar. Mas o relógio me tomou a atenção, era hora de voltar à realidade. Tomei o gole que me restava e deixei o copo ali sobre a mesa, vazio como a sua volta. Apenas uma gota ao fundo, exalando o cheiro do que outrora foi bom, como nossos pais disseram que ia ser.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O teor alcoólico de sua amizade...

Era o fim de uma noite quieta. A nostalgia tomava cada canto escuro e urinado das ruas de Campo Grande. Pessoas passavam sem se olharem nos olhos. Tinham pressa. O relógio marcava 23:42 pm. O silêncio de cemitério só era cortado ao passar de um carro ou outro. E em meio aquele vazio, duas figuras indiscretas, costuravam a calçada feito marionetes guiadas por cordas invisíveis. "Mendigos", pensei. Mal-vestidos, descalços e totalmente bêbados, escoravam seus corpos um ao outro, sem qualquer desconfiança, abraçados como crianças.
Aquela breve cena roubou minha atenção. Todos passavam esboçando risos e caçoando, mas eu enxergava algo diferente.

" - Eu te amo pra 'caraio' rapá..."
" - Você...(longa pausa)...É MEU amigo!!!"
" - Não! Eu sou teu IRMÃO!"
" - 'Tamu' junto!"
" - Então 'tamu' junto."
" - Tu num vai sozinho não! Eu 'vô' te 'levá' na porta de casa"
" - Mas eu num tenho casa, porra!"

E ambos escancararam suas bocas com poucos dentes e se entregaram a uma gargalhada interminável, chegando a se sentarem pra não cairem. Pareciam duas crianças. Felizes com o nada que tinham naquele momento. Não importava o torpor, seus mals odores, se eram pobres, descalços, nem tão pouco seus rumos de vida. Ali, reinava a amizade e lealdade verdadeira. Não tão pura quanto o sangue que corria em suas veias, era apenas amizade. Atribuída e retribuída na mesma medida. Coisa que pouco fazemos no nosso dia-a-dia, mesmo sãos, bem vestidos e com um telefone em mãos, não ligamos pra dizermos o quanto amamos alguém que está em nossas vidas todos os dias... Seja seu amigo de copo, de noite ou simplesmente aquele que te arranca um sorriso com um tênue abraço.